Saturday, May 26, 2007

+ 1 Cadáver

Um cadáver livre!
Sem regras.

"As pessoas crescidas fui-as conhecendo de baixo para cima à medida que a minha idade ia subindo em centímetros, marcados na parede pelo lápis da mãe. Primeiro eram apenas sapatos, por vezes descobertos sob a cama, enormes, sem pé dentro, e logo calçados por mim para caminhar pela casa, erguendo as pernas como um escafandrista, num estrondo imenso de solas. Depois tomei conhecimento dos joelhos cobertos de fazenda ou de meias de vidro, formando ao redor da mesa debaixo da qual eu gatinhava uma paliçada que me impedia de fugir. A seguir vieram as barrigas de onde a voz, a tosse e a autoridade saíam apesar do esforço inútil de suspensórios e cintos.
Ao chegar à altura da toalha aprendi a distinguir os adultos uns dos outros pelos remédios entre o guardanapo e o copo: as gotas da avó, os xaropes do avô, as várias cores dos comprimidos das tias, as caixinhas de prata das pastilhas dos primos, o vaporizador da asma do padrinho que ele recebia abrindo as mandíbulas numa ansiedade de cherne. Compreendi por essa época que tinham um riso desmontável: tiravam as piadas da boca e lavavam-nas, a seguir ao almoço, com uma escovinha especial. Aconteceu-me encontrá-las sob a forma de gargantilhas de dentes num estojo de gengivas cor-de-rosa escondidas por trás do despertador nas manhãs de domingo, a troçarem dos rostos que sem elas envelheciam mil anos de rugas murchas com flores de herbário devorando os lábios com as suas pregas concêntricas.
Já capaz pelo meu tamanho de lhes olhar a cara...."


© António Lobo Antunes, "As pessoas crescidas", in "Algumas Crónicas"

112 comments:

vague said...

Por decifrar estavam os olhos e era neles que residia a chave para entender as pessoas crescidas como quase eu era. Que mistérios existiam em cada um daqueles adultos, que mistérios existiam atrás dos olhos?

Ana Paula Sena said...

Atrás dos seus olhos existia o facto das piadas andarem a ficar muito sujas e a ser preciso colocá-las, por isso mesmo, de molho em água benta, por uns bons dias. Mais tarde, escová-las bem, torcê-las e pendurá-las ao sol para perderem o cheiro a bafio. Só depois disso, voltar a dizê-las. Talvez, então, alguém pudesse rir com genuíno gosto!

vague said...

E nos olhos do José, que exitiria? aquele ar ausente dissimularia algum sonho perdido? e o ar vivo e sempre atento do sr. Joaquim esconderia algum segredo?
Agora que ele próprio começava a ser chamado de crescido, olhava para o espelho já com o espírito da curiosidade e do mistério a bailar-lhe nos olhos. Quem era ele próprio através daquilo que os outros lhe liam no rosto e nas chamadas janelas da alma?

vague said...

Embora a expressão janelas da alma não lhe parecesse muito apropriada para as pessoas crescidas. É que via nos rostos dos adultos preocupações ou levezas que não seriam sempre o rfelexo deles próprios. Nas pessoas que ainda não cresceram, será melhor dizer as crianças, via que nada tinham a esconder e viviam com a liberdade e a honestidade dos olhos. Em que ponto do processo de crescimento se começa a fazer compromissos com a vida?

intruso said...
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intruso said...

Em que ponto da vida nos transformamos em crescidos? ...Em que ponto nos transformamos em escanfandristas com enormes sapatos? ...Ou em joelhos, meias de vidro, solas?
...Ou em barrigas, tosses, paliçadas? ...Ou mesmo em primos pastilhados ou rugas de herbário bafiento?

Neves de ontem said...

talvez fosse melhor deter o tempo nessa altura, olhar para os outros com olhos assombrados de menino.

vague said...

Se o tempo não se pode deter pode ser reiventado. Era quase crescido, eu. Estava no limite do salto para a idade adulta e queria que os meus olhos um dia, queria que eles, quando lá estivessem, conseguissem ler-me. Mas como? Em que sou diferente de outros que o sonharam e não conseguiram?
Poderei eu reiventar o meu futuro?

Anonymous said...

O futuro sim, porque reinventar o passado já era impossível, mas ...

Unknown said...

a certeza que me resta é que apenas podemos reinventar o momento que vivemos.

vague said...

Foi com essa certeza ao ombro que peguei na mochila e me dispus a ver o mar procurando nele a claridade que queria encontrar nos olhos das pessoas crescidas.

Ouriço said...

Estava pronta. Hoje ía pedi-lo em casamento. Eu, nós, o mar. Já não queria nada disso. Entrou no carro encarnado e fez-se à estrada.

n©n said...

Há anos que era caixeira viajante. Vendia barbies usadas, porta-a-porta, negócio em pirâmide com grande sucesso desde que a fábrica tinha fechado. O mês passado subiu dois patamares, rumo a "Diamante"... Já não faltava muito para as tão esperadas férias na República e o Mercedes prateado.

Anonymous said...

não pegou quando a caixeira deu à chave. Cedo descobriu que havia sido ludibriada com aquela oferta tão singela do último gerente da Matell com quem tinha dormido há dois meses, só dois meses... Saiu, bateu com a porta, deu um pontapé ao veículo e, pegando no telemóvel

Ouriço said...

aquele, o motorola dourado, 941009076. Tocou....
- Alô?
- Matell, boa tarde?
- Chame-me o Dr. Francisco Xavier.
- O Santo?
- Não, santa, o gerente!
- Um momento. Vou passar.
- Estou?
- Chico. É a Juraci. Precisameos de falar.

vague said...

Francisco, tenho que falar contigo pessoalmente. Entretanto pede ao teu motorista que me venha buscar. Já teria ido de boleia se não fossem as Barbies. Tenho o carro cheio delas e tenho medo de as deixar aqui. Hoje em dia as Barbies antigas valem ouro!

Neves de ontem said...

É por isso que vendo Barbies, porque vejo nelas o teu rosto de menina perdida numa praça cheia de dançantes.

Anonymous said...

E agora o que fazer? Ir e deixar tudo para trás ou esperar que alguém apareça, e....

Ana Paula Sena said...

Começar a vender também Kens para diversificar o negócio. Era uma ideia. Mas com o porta-bagagens cheio como estava, ia ser complicado. Implicava um maior investimento, um pedido de subsídio para avançar com uma pequena empresa. De comércio e distribuição de Barbies e de Kens (de todas as épocas), com umas piadas como bónus, "se em vez de 2, levar 3..."

Ouriço said...

- Olá môr.
- Não me chames môr...
- Porquê, môr?
- Acho piroso. Já me basta o resto...
- Precisamos de falar.

Unknown said...

- Falar? Falar sobre o quê?
- Então... Falar sobre nós, Falar de nós...
- Para quem diz môr a toda a hora estás com necessidades muito estranhas.
- Mas...
- E além disso, contigo não estou para ter conversas. Quero outras coisas que fazes muito melhor. Podias passar lé por casa hoje para passar umas coisitas a ferro.

vague said...

Combinado, môr. Eu passo-te a ferro e tu fazes-me o jantar o resto do mês, e levas-me o carro à inspecção (eles q vejam bem se as válvulas estão bem apertadas, o carro não quer pegar) limpas o pó e lavas a casa de banho. É justo, não achas, môr?

Anonymous said...

não, não acho. tens cá uma lata! o mês passado paguei o seguro contra todos os riscos do teu carro que está sempre avariado e a conta do picheleiro que veio cá arranjar o autoclismo. este mês, mereço que faças o jantar todas as noites e contrates uma empregada para lavar a loiça e desinfectar a banca da cozinha. e não se fala mais nisso!

Ouriço said...

"Irra, e eu a pensar num pedido de casamento...".
- Enquanto frias as batatas mais as pataniscas, eu vou alí ao shopping ver umas montras. Xau.
- Xau. Traz-me a Bola.
Saíu do prédio, que tresandava a fritos. Entrou no carro e dirigiu-se ao "Sweet Life", o shopping mais perto de casa.

Anonymous said...

Ao chegar no estacinamento do Sweet Life, notou um movimeto suspeito, e desviou o veículo bruscamente, chamando a atenção de um vigia, que....

Unknown said...

imediatamnete o fez parar. E puxando dos galardões que não tinha e ostentando uma autoridade que não lhe foi concedida, vomitou palavras agressivas e mal pronunciadas.

Ouriço said...

- Olhe lá, ó madame, onde é que vai?
- Eu???
- Sim!
- Homessa, vou ver montras. Tem alguma coisa a ver com isso?
- Tenho! Sou o Agente-ultra-capaz disfarçado de segurança. Chamo-me Alberto Pestana e a senhora está a ser seguida e investigada. As suas Barbies, são suspeitas.

n©n said...

Pensou:
"Um homem assim tira-me do sério..."
"Ora, suspeitas... claro que as Barbies são suspeitas, não fossem elas Barbies, loiras, vestidas de cor-de-rosa e boas.... muito boas. Logo suspeitas."

L said...

Olha-me este! As Barbies são dificeis, mas são nossas.

Houve quem morresse pelo direito à Barbie nossa de cada dia. Estas Barbies não são bonecas, são a liberdade à solta!

A Barbie é a vitória da justiça sobre a barbárie.

Agora vem este ultra-capaz e suspeita, investiga, requisita, prende. Não enquanto for vivo. Não enquanto me chamar Ken!

vague said...

Quem assim falava era Ken, meu colega de trabalho e vendedor de Barbies na margem sul.
Estava eu embrenhada na resposta que ia dar dar ao vigia do parque de estacionamento quando oiço a voz do Ken a responder-lhe, com a indignação que relatei. Não fiquei surpreendida com o tom, pois Ken adorava o trabalho que fazia, apenas admirada de o ver ali e perguntei-lhe o que estava ele ali a fazer, enquanto o vigia olhava para um e para outro, com ar perplexo.

Neves de ontem said...

Ouvi que as Barbies do Chiado
se tinham revoltado contra as empregadas do Brasileira e tinham encerrado as portas e os turistas queriam fazer uma grève de fotografias com o Pessoa, respondeu ele baixinho.

L said...

"Mas agora chega de conversa fiada", vocifera o ultra-capaz. "Tudo já à minha frente pró limoeiro". Mais de um ano lá ficaram, fechados e esquecidos.

Unknown said...

Cada um no seu limão, uns verdes, outros amarelos, a lembrar a bandeira do Brasil. Quando alguém se lembrava, lá eram apanhados e exprimidos. Liberdade mesmo que condicionada ao copo não era mal vinda. O pior era quando eram fatiados sem saberem contorcionismo...

n©n said...

tal como no ano passado quando os enfiaram nos ovos Kinder. Contorcionismo? Estavam era desmontados, partidos em várias peças e com livros de intruções para a montagem. Manuseados pelas mãos pegajosas, cheias de chocolate de um qualquer puto ávido...

vague said...

E ela, que tinha saído de casa para ver as montras e comprar a Bola...
passado um ano ainda não tinha voltado.
"Devia haver muita gente no quiosque", pensou Francisco.

Lauro António said...

No quiosque estava o Zeca Cachimbando que cantava o Kanibambo e estrelava ovos em cima do capot do carro do vizinho que é sempre melhor que o nosso. Olhou para dentro, para os bancos de trás, e ficou atónito. Eram Barbies, às dezenas, umas louras, outras morenas, com um Marco Paulo pequenino no meio delas. Mas o mais inesperado era a presença de vários Kents, o Clark Kent, o Kentucky, o está Kente que se farta, dá-me aí um Kent que me apetece fumar, e todos, mas todos faziam olhinhos às Barbies. Olhinhos, muito mais que olhinhos, aquilo era fazerem-se todos, languidamente. O cio escorria pelas pestanas de cada Kent, e as Barbies anteviam a chegada do mel ou da marmelada.
Uma Barbie para a Outra Barbie: - Já viste, Barbie, aquele olhar machão?
Uma Barbie para a Outra Barbie: - Se vi, Barbie querida. E nós aqui com o Marco…
Uma Barbie para a Outra Barbie: - Adoro essa, Marco do correio o que tens lá dentro… Era do Alberto Ribeiro, um piqueno muito jeitoso, com um a voz de enfeitioçar…
Uma Barbie para a Outra Barbie: - Quem é esse? Algum Kent?
Uma Barbie para a Outra Barbie: - Não, não sejas parva. Olha disfarça… O quinto Kent está a engatar, já viste?
Uma Barbie para a Outra Barbie: - Farsa. Já disse. Qual Kent?
Em Alexandria, todavia, à saída da Grande Biblioteca do Papiro Raro, por entre explosões de alegria, motivadas pela Greve Geral no país dos caracóis, um pistoleiro disfarçado de marinheiro de Querelle, apontava o horizonte e afirmava sem tibiezas (é sempre bom afirmar sem tibiezas!): Ora cá está!
A frase podia ter sido dita pelo Superman ou qualquer outra grande personagem do universo da BD, como o Bush, mas foi mesmo o disfarçado de aviador da II Guerra Mundial quem o aforou a plenos pulmões: Ora cá está!
E não é que estava mesmo? Ali estava ele, erecto, com o olhar distante, perscrutando o horizonte (adoro perscrutar o horizonte, dá-me forças, uma vida nova!). Infelizmente ou era das lentes negras, ou do simples facto de ter cegado à nascença, o que tal não via nada.
- Nada de Nada, acrescentou a Barbie.
- Cala-te e aproveita o Kent! Nem todos os dias são de Kent!
- Pois não, a maioria são de Pedras Salgadas, “em ponto.”
E foi aqui que a varina saiu de detrás do balcão e gritou: - “Em ponto me saíste tu, minha grandíssima porca, vá lá lavar os dentes para a sua rua, ranhosa, bafienta, a perturbar a vida dos outros….”
Depois, espreitou á esquina e disse baixinho para a girafa do som:
- “O Vivadacosta!”
- Não me digas!?, Esta é que é a Carolina do Pinto Vivo da Costa? (Era definitivamente um vermelho que fazia a pergunta. E não obteve resposta.) Ficamos à espera.

Ouriço said...

Era ela mesma. Vestida de verde, dos pés à cabeça....
A varina olhou para a sua mercadoria e achou que o melhor seria preparar mas sardinhas para comer à noite, com batata assada e saladinha de pimentos, com alho e azeite a preceito. Aquele ambiente de barbies decadentes estava a dar cabo dela.

Anonymous said...

Foi com esse sentimento negativo, que resolveu dar uma passada de olhos no que continha o envelope...

O Pai said...

Abriu . . .

Que surpresa . . .

O João ainda se lembrava dela. Tinha sido o seu primeiro namorado e o responsável pela sua entrada na rede Barbie.

João, que não tinha tido sucesso saiu da rede e foi abandonado pela Juraci..

Decidido a criar o seu negócio, avançou para o que melhor conhecia e abriu uma casa de alterne. Mais lucrativo e cheio de barbies (mais gordas e feias, mas velhas e usadas como as outras).


“ Massamá, 01 Abril de 2028

Juraci Espanca,

Como sabes, nunca te esqueci, mas hoje que vi a tua foto na Newsletter digital do Lidl (Vendedora Barbie do Ano) senti que não posso viver sem ti.

Tens que vir viver comigo e com o Alberto (como sabes, foi o namorado que escolhi para te substituir). Faremos de ti uma mulher especial.

Diz-me qualquer coisa. Estou desesperado,

Teu, Sempre, com Amor

João”

Juraci ficou sem palavras . . .

Unknown said...

gigante. Porque raio fazem envelopes deste tamanho? O dinheiro que se gasta em selos... E tudo isto para um cartão de visita mínimo a agradecer a sardinhada.

Unknown said...

Juraci ficou sem palavras porque comentou ao mesmo tempo - afinal existiam 2 envelopes para abrir. Será que ainda haviam mais?

intruso said...

Será que tudo não passava de uma mentira?
...Será que tudo era, na verdade, uma grande e idiota piada cósmica? ... uma partida entre barbies e crescidos e assim-assim...

Lauro António said...

"Estes gajos não regulam bem", disse a Barbie para a Barbie. "Já viste que não deixaram nem um Kent para a gente degustar? Julgam que nos alimentamos de sardinhas assadas, ou quê?" Então a Barbie respondeu - "Ainda se viessem acompanhadas de salada de pimentos e vinho tinto, vá que não vá, mas a seco!"
Neste entretanto, passou voando um envelope, logo seguido por outro.
- “Uma corrida de envelopes voadores?”, inquiriu o Justino Traquitanas que tinha por hábito inquirir quando via envelopes a voar. Por isso ninguém lhe respondeu. Limitaram-se a sorrir e de imediato voltaram ao seu trabalho, colando selos com a língua. Eram os coladores-mores deste reyno e dos algarves, dalém e daqui mar.
Em saltitantes saltinhos de saltadoras atravessaram a estrada as intrépidas Manas Alegria que tinham fugido do Maravilhoso, Espectacular, Majestoso, Nunca Visto Circo da Vidinha-À-Raca que estava instalado na Praça do Município. Ela tinham tomado a direcção do Chiado, parado na Fnac para comprar o CD do António Sala, e iam já a caminho dos Restauradores, quando deram de caras com o D. Maria II. Anunciava-se uma peça do Jarry, compraram bilhetes para as filas da frente e começaram logo a dormir, pois estavam muito cansadas da noite passada no trapézio voador.
- “Apagão!”, gritaram os circunstantes, e acenderam fósforos, isqueiros e velas. Estas, mas lhes deu uma brisa, fizeram-se ao mar e levaram consigo os sonhos de cada um e de todos nós. Era carga explosiva. A barcaça regurgitava de tão empanturrada e…
- “Felizberto, esta bem?”

vague said...

Perguntava-lhe Juraci, debruçada sobre a varanda enquanto lhe uns valentes e preocupados abanões.
Felizberto abriu os olhos estremunhado e foi com mal disfarçado alívio que respondeu:
- Que bom ver-te, Juci! Sonhei que era uma Barbie e que passavam por mim envelopes voadores que me queriam levar para um barco com explosivos!

vague said...

Felizberto, mas que raio! Sonhaste que eras uma Barbie?
...
Berty, tens alguma coisa para me dizer?

Lauro António said...

- "Tenho tudo para te dizer, ouves-me?"
- ???
- "A minha vida sem ti não faz sentido. Ve..."

Unknown said...

ra... VERA!!! VERA!!!
- o quê?
- É a Vera!
- Quem?
- VERA!!! VERA!!!
- Que se passa?
Berty levanta-se e continua a gritar:
- Vera!
- Espera!
- Agora não posso... Tchau
- Onde vais? O que aconteceu à tua vida que não faz sentido sem mim?
- Acabou!
Diz Berty já a correr atrás de Vera; alcança-a, toca-a no ombro e...

vague said...

...enquanto Juraci assiste boquiaberta ao abraço que Berty dá a Vera seguido de um lânguido beijo nos pescoço, como se não houvesse amanhã, ontem e muito menos hoje, como se vê.

Mas qu'é isto? O gajo sonha que é uma Barbie, depois acorda e diz q não pode viver sem mim, passa uma Vera qualquer e ele vai atrás dela?

Hás-de vir comer na minha mão, eu aqui faço uma jura aos pés desta calçada que não me há-de comer.

Entretanto são horas para voltar para casa do outro. Saí deve estar a fazer um ano, é só comprar a Bola e vou ver se ele pede em casamento.

A gente depois fala, FElizberto! farei com que não te esqueças de mi!
ai ai o doce sabor da vingança, veneno e femininos ardis!...

la ra la...

Táxi, táxi! Psiu!

Maria Eduarda Colares said...

- Para onde?
- Seixal.
- Nem pense. Não vou para essa zona. Mete-se areia no motor e depois quem é que me paga a afinação? Para mais os postos de abastecimento estão cheios de camelos que fazem umas filas intermináveis...
- Cáfilas.
- O quê?
- Cáfilas, é como se chama às filas de camelos.
- Chame-lhes o que quiser, mas a mim é que ninguém chama camelo. Ponha-se lá fora, vá, andando, andando, que eu preciso muito de trabalho, mas não preciso de ser gozado, entendeu? Anda-se aqui a penar para juntar uns míseros cêntimos ao fim do dia...
- Sabe o que e´que está a dar?
- Ser parvo.
- Vender Barbies.
O taxista passou-se dos carretos. O homem devia saber toda a história. Pegou na moca que trazia sempre consigo, recordação de Rio Maior e saltou para fora do carro. Ele podia andar por aí com toda essa treta da informação confidencial, que confidencial era o raio que os partisse, pricipalmente àquele reles do Monteiro das Osgas, mas isso era conversa para uma próxima oportunidade. Agora o que interessava era deter o marmanjo, que os outros, acreditando na balela do confidencial, ainda eram gajos para fazer explodir a reserva de Barbies que ele acumulara tão penosamente durante uma existência de sacrifícios em que nem uma vez, NEM UMA, deixara de pagar pontualmente os impostos para que não lhe fosse recusada a licença de importação.
Não, a coisa não podia ficar por ali!
- Valha-me a moca! - gritou em quase pânico.

L said...

Juraci entra no táxi. A cabeça em polvorosa. Os homens! Relembra os milhões de episódios da mesquinhez masculina que já teve que suportar.

Vou partir para o campo! Chega! Chega! Não preciso de homens para nada!

Por momentos sente um torpor causado pela lambrança daquele fim de semana passado com o Leandrão. Fraqueja...

Mas não! Os homens são os trastes. Todos. Acabou-se.

L said...

Sim, estou farta. Das palavras vazias que falam das minhas mãos, disto e daquilo. Só tretas, palavras macaqueadas do que já dito mil e uma vezes a mil outras. Tretas, os homens são só tretas, desde o trolha ao poeta, só muda a sofisticação.

Querem todos a mesma e única coisa. levar-me para a cama. Mas acabou-se! Estou mais que vacinada.

Bem podes vir para aqui com cantinguinhas que comigo não hà tempo, que queres partir comigo, etc e tal, que não levas nada.

Acabou-se. Agora só quero homens que me satisfaçam a mim. Sim eu.

Lauro António said...

"Homens que te satisfaçam só a si, não temos. Mas o cozido à portuguesa está a sair muitro bem! Com vinho tinto da casa, é sempre uma delícia."
"Cuscus, não tem?"
"Sabe, isto por aqui é um deserto, mas ... faltam cuscus. Aliás falta tudo, se não temos gente, nem hotéis, nem escolas, nem hospitais, nem ... olhe nem ministros, aqui só mesmo areia e uns camelos. Dos cuscus, temos para aí uns cus que sobraram da última assembleia geral ... mas não aconselho. Duros. Rijos.”
“Não, não pode ser, Tenho de te re-encontrar. Vem, Vera, ou lá quem sejas. Espero-te. Aqui há tudo, como no supermercado. Só não há sereias, eu sei, por isso preciso de ti. Anda tomar um café… comigo. Quero conhecer-te melhor. Satisfazer a minha curiosidade e não só. Vem, o Felizberto chama-te. “
“E agora o que vai ser mais?”
“Uma bica e um charuto!”, disse de forma imperial.
“Pois charuto não temos. Aqui não há mesmo nada, percebe? Havia o Museu da Isabel. Mas foi numa tempestade de areia. Rummmmmmmm. Tudo á frente. Até o Vitória foi para a liga de honra… uma desgraça. Quanto à bica, pode servir-se: está ali, ´´e a única a escorrer no deserto. Não chegue a boca mesmo à bica, ou está suja ou pode ficar. E não há hospitais, sabe?”
Se não fosse o cavalo do Gary Cooper (“Quem?” – “Ignorante que nem sabes quem foi o Gary Cooper!), Felizberto não tinha saído dali. Mas tinha de sair, queria ver a Vera, amá-la, possui-la, beijar-lhe o pescoço, despir-lhe a camisa, soltar os seios….”
“Olhe que está a delirar. Na margem sul não há nada disso…Aqui não se beija, não se apalpa, não se come… Aqui olha-se para o horizonte de areia, e espera-se transporte para a margem Norte. Fique bem. Está a passar o camelo das 11, tenho de me apressar, senão ainda durmo hoje aqui.“
“VERAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!”

vague said...

- Pois agora quem não quer andar no seu táxi sou eu! Vê-se mesmo que não vê as notícias. O camelo tinha a ver com o outdoor que puseram à entrada norte do deserto (a 5km do oásis, sr taxista!), não lhe estava a chamar camelo a si!

- Ai a menina desculpe...não sabia...

- Qual menina qual carapuça. Para si sou a senhora menina.
Agora o mínimo que pode fazer é dar-me o telefone de um colega seu.

- E não quer também um ferrero rocher?

- Tem???

vague said...

- nham nham, que bons são estes ferreros, Jesualdo.

- não são como aqueles que se vendem por aí, menina Juraci. Estes são importados.

- Jesualdo, é como lhe contei. o Francisco pediu-me para comprar o jornal e eu fui mas atrasei-me um bocado, houve uns problemitas e aproveitei para pensar na vida. Entretanto conheci o Felizberto, Berty, que andava numa certa indefinixão sexual, e sonhava que era uma Barbie. Só que ele dizia que não podia viver sem mim e eu ia acreditando (disfarçadamente, para ele não se armar aos cucos)
até que estava ele quase a pedir-me em casamento quando passa uma despeitada qualquer (que via-se que tinha posto um implante de silicone)e ele larga-me e vai a rastejar como um cão atrás dela.

- pela descrição que me fez desse Felizberto...hum.

- hum? tem alguma pista, Jesualdo?

- ai menina.

- diga já ou cale-se para sempre! e passe para cá mais um ferrero.

- Pois lá vai. Esse tal de Berty estava há dois dias em alegre ...convívio com uma rapariga daqui, uma filha da terra, uma desnaturada, é o que é.

- ...Ela chama-se Vera?

- Chama..E é um travesti.

vague said...

("indefinição", claro :)

Lauro António said...

- “Travesti, o caraças! (isto porque este é um lugar selecto, senão logo vias!). Muito homem, minha queridinha. E se queres experimentar, ver como é, desce a calcinha.”
Foi assim que Felizberto reagiu á graçola. Ficou fodido com aquela piada da Barbie de trazer por casa, e estava mesmo pronto a ir até aos limites, quando viu a Vera aproximar-se e dizer:
- Olá, meu raminho de miosótis, querido.
“Raminho de miosótis?”, andará tudo doido? O Felizberto não se tinha em pé de embriagado que estava com tamanho elogio. “Raminho de miosótis!” era de mais. Nunca ninguém o tinha chamado assim.
“Anda cá meu manjerico de feira, com quadra amorosa espetada na terra, anda cá que te acaricio a pêra.” Felizberto percebeu imediatamente o que Vera queria: largou a pêra que mordicava e ofertou-a a Vera que a acariciou meigamente.
“É tua, a pêra”, disse Felizberto.
Vera não se cansava de a afagar, depois meteu-a na boca, mordiscou-a, lambeu-a com volúpia inusitada, a sua língua escorria pela pele da pêra até chegar à concavidade já mordida, aí parava, olhava Felizberto nos olhos, e continuava.
Felizbento ainda tentou conter-se, prolongar o êxtase que aquela visão lhe provocava, mas já não aguentava mais… “Não posso mais!”, gritou. O corpo dobrou-se sobre si próprio e contorceu-se numa macabra agitação de esqueleto de circo.

mariaterezaprado said...

As lembranças perseguem Juraci a partir de agora...
De cima pra baixo sua idade descendo centímetros.
Permanece ali observando lentamente a porta do táxi. Julgando seus arranjos de tonalidades, suas configurações geométricas... O conjunto engenhoso propõe uma baile de máscaras. Decifra imediatamente a última palavra ouvida e tropeça na reflexão. A impressão de não ter saída que contamina o olhar desarticula as palavras. Abraçada a um turbilhão de fantasmas estuda essa liberdade que a ameaça na escuridão. Afunda num calor que massageia. Uma gelatina desloca-se tremulante trepidando sob a pele. Finalmente caindo entre as pernas para ali adormecer. (os óculos podem camuflar as lágrimas que perambulam a pele nua, mas a moldura continua fixa enquanto a lágrima lambe a epiderme até cair )
Seus dedos invadem o bolso.
Agarra-se ao cigarro
essa bússola enevoada ( o mundo nítido lhe é desconhecido )
A brasa aponta o norte do medo
A verdade encapuçada abraça sua sombra
_____________mira seus olhos______________
No interrogatório nega a si mesma
esperando encolhida sua próxima mentira
Esse intuito flutua numa viagem castrada até o fim

No fundo
uma mordaça
Um cano de revólver

-Liberdade é uma cápsula inviolável.

O Pai said...

Porem toca o telefone.
Juraci atende.
- Estou, sim?
- Bom dia, falo da endemol e gostariamos de contar consigo no nosso próximo concurso - Os famosos na casa da Barbie - que será apresentado pela dupla Teresa Guilherme e Júlia Pinheiro!!!
- E tenho que decidir já????
- Sim. Tem 10 segundos para nos responder. Entra para a casa da Barbie amanhã.
- Muito bem. A minha decisão é . . .

Neves de ontem said...

ACEITO!
Tinha as malas prontas para partir.

vague said...

de imediato falou para dentro, 'aceitei, ai! tão depressa, e ia eu ia eu a caminho de casa do Francisco, espera aí eu posso ligar-lhe e perguntar se ele não se importa de esperar um bocadinho, mal por mal, é só mais um mês ou dois e o que é que eu vou fazer com o dinheiro do prémio do 1º lugar? e o Felizberto, já não se onde ele pára, aquele gajo é marado de todo, então agora depois da fita de sonhar que era uma Barbie, depois de se atirar à vera travesti. reagindo muito virilmente logo de seguida, hum, o Berty prometia, aquilo se calhar foi mesmo só um sonho que quer dizer o contrário do que parece e se ele afiança que a Vera não é u travesti..acho que o sr. Jesualdo taxista devia era estar com alguma dor, se calhar a Vera deu-lhe para trás, ah pois não me admirava,
onde é que eu ia? ah pois é, ia para a "Barbie na casa dos famosos"
, será isto a decisão certa? ai ai ai

- Então, disse que aceitava, Juraci, arrependeu-se?
Piet Hein, que tinha um perfume igual ao do Berty, lançou-lhe um ar arrasador e Juraci sentiu as pernas a tremer.

O Pai said...

- Juraci (comenta o Piet Hein), sabias que alguns dos autores deste Cadaver também vão entrar para a CASA DA BARBIE FAMOUSOS. A S. foi convidada, assim como a vague, a neves de Ontem, a mariateresa, o lauro antónio e os demais participantes.

- Mas Senhor Hein, cabemos todos na Casa da Barbie?

- Sim, e a sua participação é muito importante Juraci. Vamos fazer de si a melhor e maoir BARBIE de sempre. Vai ficar mais conhecida na Bobadela, Arrentela ou Seixal que o Zé Maria. Estamos a contar consigo... e não se esqueça que assinou um contrato.

Olhe, vou agora falar com outro dos participantes no programa. Vou falar com o ...

Ouriço said...

- s.?
- Sim?
- Juraci, filha, lembras-te?
- Filha? Não não me lembro
- A Barbie! Vamos participar no Casa da Babies Famosos.
- Vamos?
- Sim, eu e todos os participantes do Cadáver.
- Hum....
- S? Estás aí?
- Fiquei sem palavras. Tu, no meio de nós, não me parece.
- Eu vou, vamos-nos divertir imenso.

Lauro António said...

Ná, não me parece. Há coisas que nem por todo o dinheiro do mundo. Não vou, nunca me apanharâo a fazer algumas coisas. Não faz parte da minha condição. Há que ser sincero, autêntico, único. Nem num cadavre expuis, por muito exquis que seja. Eu, Filezberto da Conceição, sou assim. O holandês bem pode acenar com 100 euros que eu nao vou. NÃO VOU.

vague said...

Não sejas birrento, Berty. Pensa só no que 100 euros podem fazer pela tua vida ("ou pela minha. Sim, que se ganhares o prémio, aí é que eu não te largo!, eheh") Depois de ganhares o 1º prémio dos 100 euros logo pensas nesses teus princípios. Agora pensas é em ir, uma coisa de cada vez, mais do que isso olha os neurónios, Berty.
E para veres como sou desinteressada, digo-te que a Vera travesti também pode ir ("e deve, vai levar cá uma ensaboadela, ai que não me aguento até lá")

Lauro António said...

Não vou, já disse!

vague said...

(suspiro)
...bom, se o Berty não vai e se o Francisco está cá fora, será melhor eu não ir também para ver como é que páram as modas.
A Vera travesti tb não deve ir; se calhar quer é apanhar-me lá dentro para ficar com a costa livre. Nunca me enganaste, Vera!

Anonymous said...

E a culpa como sempre recai nas costas dos mais fracos. Vera, nesta história toda, tem seu papel definido.
Mas por que?

n©n said...

Porque ela de facto não existia. Vera era o alter-ego de Juraci...

Ouriço said...

que não conseguia mesmo dormir, a insónia estava a tornar-se doentia.

Unknown said...

e decidiu ir ao médico. A um médico especialista em pessoas com este nome. Sentiu-se observada quando chegou: todas queriam saber como era esta nova Insónia. Seria concorrência para se levar a sério? ou só mais uma Barbie desta colecção que também não tinha saído perfeita?

vague said...

Quando a Juraci/Vera me ligou hoje à tarde eu disse-lhe logo, para atalhar a conversa, que sabia bem que a Vera era um alter ego dela.
Por isso é que eu quando vi a minha amiga Verónica na rua fui atrás dela, chamando-a, e a Juraci pensou que eu estava a chamar pela Vera. E criou uma tal fixação nela, na Vera, ela própria.


Eu Felizberto da Silva, no fundo adoro esta mulher que é duas numa, mas não lhe posso dizer sempre isso senão ela aproveita-se da situação!


Enquanto Berty assim matutava, Juraci explicava ao médico a sua insónia e perguntava se teria alguma coisa a ver com as Barbies.


'Vamos já ver isso' . Dispa-se, menina Juraci.

vague said...

Acabou? :)

Lauro António said...

Acabou. Cada um foi para seu lado. O Felizberto fugiu com a Vague. Prós Açores. A S. desapareceu para os lados do Antártico com o Senhor Fernando, o taxista. A Ouriço ficou em casa com uma pneuno (acho que são felizes a ver DVD). O Pai, o X. e o LA foram mobilizados para as Malvinas. A Ana Paula foi contratada pelo Scorsese para uma continuação de A Idade da Inocência (contracena com o De Niro, e não vai voltar a mesma!) A M. não pará de traduzir as "Confidência de um Camionista Longo Curso". O Intruso corre atrás do Coelho, o Luis anda em tournée com a Vera no Cardinale. Coisas de trapézio.... Depois há por aí muita gente que simplesmente desapareceu. Foi um ar que lhe deu... Pfuuuu.
Mas ouvi dizer que a Vague está vagamente arrependida. Será que volta? E o Felizberto, deixará? Que se passou entre eles? Uma arrebatada história de paixão, ou simplesmente um rapto doloso? E a paixão terá terminado? Já se sabe como é o Felizberto: um tonto, um catavento. O melhor é alistar-me também...Adeus, vou partir. Até ao meu regresso.

L said...

E as Barbies sentaram-se no chão, tristes. Isto é mesmo dos humanos, pensaram. Andam sempre tão ocupados com coisas tão complicadas, conseguem atingir formas de relacionamento tão complexas e estranhas, que se esquecem do coisa simples: do afecto.

Do gostar. Uma coisa mesmo simples, nós barbies sorrimos porque gostamos de voçês, pá!

O ken olha prá barbie e riu-se. A gaja é mesmo parva. Paleio de gaija armada em sabichiona, pensou.

Vou beber uma mine que tá calor. "Ò maria, vou sair, não esperes por mim que posso vir tarde."

vague said...

Bom, eu e o Berty juntámos a mobília e somos casados e infelizes.

Posto isso e dado que a dona da casa não está despeço-me sem dizer adeus que é a maneira menos dolorosa de partir.

Saio de fininho para não acordar ninguém, muito menos o Berty, que dorme sereno sem sonhar que esta noite mesmo vou voltar para o Francisco, não há como a distância para afinar os sentimentos.

S. obrigada pela pernoita :)

Deixo a chave na porta, ok?

Neves de ontem said...

Fecho a porta, o verão está a chegar.

n©n said...

S., a dona da casa, que tem andado afogada em trabalho, ficou completamente surpreendida com a debandada geral...
- Já vais Vague? Porquê?
- e o Berty?

Unknown said...

- O Berty continua a perseguir a sua Vera e a Vague... Bom, confesso: não faço a mínima ideia!

Lauro António said...

A dona da casa, de avental à porta, protesta:
- "Ora vamos lá ver que merda é esta! Há ou não há respeito?"
Respondem todos em coro:
- "Não há!"
Todos, não é bem assim.
Houve alguém que mexeu os lábios mas não emitiu qualquer som. Regressava do Ceilão e não se queria meter já em Novas Aventuras. Queria paz e uns dias de descanso do guerreiro. Uma mesa para comer e beber. Uma cama para dormir (e algo mais, para os seus momentos de lazer acordado – queria uma mulher, diga-se, para evitar os equívocos!).
Pensou, pensou, e não achou nada melhor que “a pensão residencial, com águas quentes e correntes, “A Flor do Intendente.” Foi-se a ela.
- “Quanto?”, perguntou à entrada.
- “Quarto ou mulher?”
Olhou-a de alto a baixo, demorando-se no meio:
- “Como te chamas?”
- “Esmeralda”, retorqui ela.
- “Anda cá ao pé do mim…”
Ela caminhou dolente, ele lançou-lhe o braço à volta da cintura e apertou-a contra si…
- “Ainda és gaiata! Quantos anos?”
- “Olha-me este. Maior e vacinada, não te preocupes, marinheiro.”
- “Quanto?”, voltou a perguntar. “Quarto e gaiata!”
- “Duzentos e vinte. Pago à entrada.”
- “Desculpa, à entrada de quê? Do quarto ou da gaiata? Quanto estou a entrar não gosto de ser incomodado… “e atira 250 para cima do balcão. Manda cervejas também. E a menina toma?”
- “Meia de leite!”
- “Escura?”
- “À cor ambiente. Com adoçante. Já sabes. Quero perder quatro quilos.”
Subiram.
Lá em cima, viram o número do quarto e abriram. Não era o deles. Ainda tiveram tempo de descortinar os movimentos sincopados de Vera em cima de alguém que ela parecia querer reanimar. Ou seria outra coisa? Fecharam a porta.
Novo quarto. Já não abriram de imediato. Colocaram o ouvido à escuta. Não se enganavam. Alguém gemia:
- “Sim Felizberto, não pares, força, continua…Está quase!”
Esmeralda sorriu:
- “Coitado. Sempre a correr desde o meio-dia.” (era quase meia noite!).
Seguiram.
Ele ia abrir, mas Esmeralda retém a mão na maçaneta da porta seguinte.
– “Essa não, está por conta das Barbies. São dez. Alugaram a suite real para passagens de modelos. Chamam-lhe o in-out. Coitadas, sempre a vestirem e a tirarem!”
Finalmente abriram um vago, mas com um cheiro intenso a uma mistura de creolina e naftalina. Abriram a janela sobre o Tejo.
- “Cuidado, não caías!”, gritou o marinheiro experimentado.
Despiram-se, deitaram-se ao lado um do outro, Esmeralda colocou a sua cabeça loura no ombro causticado pelo sol do marinheiro, e adormecerem. Acordaram alguns minutos depois, com toques na porta:
- “Quem é?”, perguntou Esmeralda.
- “Corto Maltese”, disse o marinheiro.
- “Não te perguntei a ti, crido”, disse Esmeralda, quando já entravam as cervejas e a meia de leite, escura, com adoçante.
Beberam
- “E agora, Esmeralda?, perguntou o marinheiro, como o dedo indicador da mão direita a rolar no mamilo.
- “Olha para as minhas mamas, o Dr. Júlio Machado Vaz diz que faz bem aos homens. Acalma-os.”
- “Não é calma o que sinto, Esmeralda. Temo que o Dr. Júlio Machado Vaz se tenha enganado. Desta vez.”
Então…

vague said...

O marinheiro de Ceilão chamava-se Alberto e por alguma daquelas coincidências que não lembram ao diabo e que nasceram para ficar na história, Alberto era o irmão gémeo de Felizberto e andava embarcado há anos para fugir de uma mulher maquiavélica que, ofendida no orgulho por ter sido rejeitada por ele, tinha feito missão da sua vida persegui-lo enquanto ele estivesse na sua Canaveses natal. Chamava-se Fátima Canaveses e era uma mulher perigosa que Alberto, desgraçadamente, ainda não conseguira esquecer.

vague said...

Mas voltemos aos factos daquela noite. Quando Esmeralda se pôs à custa de um dos quartos e o nome de Felizberto foi sussurrado entre suspiros lânguidos, Alberto pensou no irmão que tinha ficado na terra e por uns momentos sentiu uma coisa estranha, talvez se chamasse saudade. Afinak eram gémeos e inham sido muito próximos no passafo.
Depressa o seu coração empedernido e habituado à aridez de afectos pôs de lado qualquer sombra de comoção e fez por esquecer o que só podia ser um engano.
Entrou no quarto com Esmeralda e depois de despidos e nus, o amor feito imperfeito

"Não é calma o que sinto, Esmeralda. Temo que o Dr. Júlio Machado Vaz se tenha enganado. Desta vez.”
Então…
Então Esmeralda, há pouco ouvi o nome do meu irmão e pensei o quanto gostava de o ver de novo. Depois pensei para mim que não volto para Canaveses, nem para presidente do Clube! Não é calma o que sinto, é esta raiva de ter abandonado a minha juventude naquela terra e ter-me vindo embora. Tudo por causa da Fátima. Mas agora imaginei que para ver o Felizberto talvez me desse a esse trabalho que é voltar lá. Mesmo que a Fátima ainda seja a presidente da Câmara e por isso, tenha conhecimento imediato dos filhos da terra que chegam e que andaram embarcados.

Bandida said...

e ela que andava a fazer uma psicoterapia breve esqueceu-se de apagar o lume e queimou o frango que já estava em lume brando há mais ou menos cinco horas. não há razão para que a depenada galinha se tenha esquecido de ser comida. aliás, quando olhou para o relógio e se lembrou da costeleta, reparou que não tinha ponteiros. aí ficou preocupada com o gato. não havia razão nenhuma para lhe ter comido a feijoada.
desculpou-o e atravessou a rua a cantar baixinho a marcha nupcial.

Lauro António said...

- Olha, nem sei que diga. O pior é sempre começar. Um gajo dá as primeiras garfadas e depois vai tudo a direito. Bem, o que há para comer? Frango esturricado? Nem penses, Bandida! Ou aprendes a cozinhar ou não convidas ninguém para um repasto de torresmos. Olha, acho que vou voltar para a Esmeralda, antes que a cigana fuja com o mostrengo da Notre Dame. A Esmeralda é fixe e hoje preciso de serenar este stress.
- Esmeraldaaaaaaa!
- 'Quê, mor? Já vou.
- Anda pró pé de mim. Preciso tanto.
E assim se passou mais uma noite. Não sem antes ter acordado, com o ruido das dez Barbies no quarto ao lado. Aquilo é que foi farra até às tantas. Ah, gandas Barbies.

Unknown said...

Mal sabia ele que não valia a pena invejar a farra do quarto das Barbies.
A Barbie Insónia estava sozinha e não podia deixar que isso se soubesse e pôs a gravação de sempre no leitor de fitas. Tinha 'apanhado' estes sons na festa que seguiu a benção académica da irmã, essa sim, muito popular.
Tão popular que já nem ia à feira. A ladra roubara-lhe tudo: os amigos, o namorado e a vida.

Anonymous said...

...e agora sem vida! O que fazer?

vague said...

Só havia uma solução: ressuscitar.

Barbie Insónia encheu-se de brios e coragem e atirou-se ao rio. Lá em baixo, no continente perdido estava quem lhe faria uma doação de oxigénio light - Nemo, o príncipe dos mares.

Inspirou fundo e mergulhou.

Ana Paula Afonso said...
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Unknown said...

Mas ao contrário do prometido no anúncio, não emagreceu. Inchou como uma bola e todos os seus defeitos de fabrico se tornaram ainda mais visíveis, mais notados pelos olhos vivos da polícia, esses sim com juízo suficiente para não acreditarem em tudo o que é publicidade. Light só os coletes à prova de bala, onde os doces não conseguiam entrar.

vague said...

Tou tramada! A água fez inchar os pacotes de heroína que trago no estômago! A polícia olha para mim desconfiada...E até se nota a celulite agora! E se caljar depois fico com estrias! raios raios raios para quem me contratou para ser correio de droga! O marinheiro de Ceilão vai haver-se comigo!

mariaterezaprado said...
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mariaterezaprado said...

Nesse instante lembrou-se de uma série de Barbies sereias que outrora lhe confidenciaram uma canção Netuniana pois:

No caminho dos peixes mensageiros
Ouço a trilha sagrada de Netuno
o roteiro maior do grande abismo
que me leva ao silêncio submerso
sei que o mar se desdobra no meu sangue
e meu sangue salgado se dispersa
nas perdidas viagens pelo amor
meu amor é o amor que não espera
que precisa de tudo a todo instante
e morrendo também se regenera
na aflição que a paixão consome e gera
só vim ao mundo em busca da beleza
que um deus menos eterno prometeu
encontro mágoas no planeta frio
e sonho a vida inteira o mesmo sonho


Raios raios, agora é com você Santa Bárbara, Iansã, Senhora dos Ventos...

Anonymous said...

E com estes pensamentos, e frases aos gritos, Iansã aparece e....

vague said...

e chama o eduardo! :)

e apreciadora de poesia diz à mariatereza, antes de abençoar os mares,

'que poema que graça de poema você fez'

mariaterezaprado said...

esta lisonjeada e surpresa,vê

o rumo do cadáver em altos mares onde briga de Iansã e Iemanjá
vira cantiga de Barbies
por soleares


Barbie Insônia e Nemo apresentam-se agora num tablao flamenco.

vague said...

E dançam e rodopiam com uma elegância tal que todos os peixes do oceano aparecm como por magia e os envolvem num abraço de cor.
No meio desse palco improvisado Barbie transforma-se a pouco e pouco em sereia e sorri. Na dança com Nemo este tinha-lhe dado oxigénio que lhe faltava e Barbie ressuscitou. Era agora uma sereia, uma princesa dos mares.

E agora, S? :)

mariaterezaprado said...

Um pouco sentida, pois estava gostando daquela história de bailaora flamenca, Sereia Insônia olha para a cauda toda pensado o que fazer com ela. Seu amor por Nemo passou a ser agradecimento pelo oxigênio.
Que tal então uma voltinha à superfície? Algum marinheiro forte e tatuado encontraria por lá.
Rapidamente começou com aulas de cante. Flamenco, é claro! Uma sereia andaluza. Perfeito!

vague said...

Cheio de saudade do mar, o marinheiro de Ceilão aproximou-se da fina linha d'água e deixou que esta, fria, lhe acariciasse as mãos.
No silêncio da noite começou a ouvir um leve rumorejar, seriam folhas a ondear ao vento?, depois um assobio cheio de tons musicais, seriam cores pintadas no barulho das ondas?
Alberto deixou-se encantar pelos sons ou cores ou deslumbramentos da noite, deitou-se na areia e não podemos dizer se 'pensava' na amada ou se 'sentia' a sua presença na respiração nocturna.

mariaterezaprado said...

Passaram uma, duas, três... após sétima onda o marinheiro ouviu claramente voz límpida entoando tal canção:

"Toma este puñal dorao
y ponte tú en las cuatro esquinas
y dame tú de puñalás
y no digas que me olvidas
y no me lo digas jamás
que con el aire que tú llevas
cuando vas a navegar
hasta el farol de la popa
que tú lo vas a apagar

cambiaste el oro por plata
la plata se volvió oscura
cambiaste el oro por plata
que cambiaste una noche muy clara
por una noche sin luna
qué disparate, qué disparate,
que yo te quiera, igual que antes"

vague said...

Barbie Insónia Sereia aproximou-se do marinheiro encantado pela sua voz e magníficos versos e afagou-lhe o rosto emocionado.

- Quem és tu?, disse Alberto à aparição.

mariaterezaprado said...

-Sou teu navio.

Anonymous said...

E caiu numa rumorosa gargalhada!

Neves de ontem said...

Mas logo começou a choramingar.

vague said...

- Que tens, minha deusa? E porque te riste?

- Não foi por mal. Eu estou tão cansada de estar aqui e isso e a maldade humana que há em mim fez-me ter uma vontade louca de te baralhar. Faço mea culpa. Perdoa. Eu sou o teu navio, sim!

vague said...

- Um marinheiro segue sempre o seu navio, menina encantada.
Chamo-me Alberto e nasci agora mesmo.

mariaterezaprado said...

-Segue então, Alberto, seu "Navio de Espelhos" até o fim do mundo!

vague said...

"Até à eternidade", é o nome do filme com a Beborah Kerr, Ah essa mulher foi a minha sereia antes de te ver...
nas minhas viagens pelo mundo vi tanto filme, apaixonei-me por tanta actriz e era tudo ilusão. Mas tu, aqui, pareces tão real. Será que vais desaparecer através do vento? Ou vais deixar mesmo que te siga até ao fim do mundo?...Ou és uma ilusão mais, como todas as actrizes do grande cinema que me povoaram os sonhos e as noites insones?

vague said...

("Deborah Kerr, obviamente :)))

vague said...

Não importa
___________
__________________

Vou mergulhar contigo

mariaterezaprado said...

Ao pronunciar Alberto última palavra, ouve-se o estrondo de imenso trovão. Do mar revolto entre espumas em sonara gargalhada,
surfando na crista da mais alta onda, avista-se Poseindon.

vague said...

que disse,
'paz à sua alma'

:)

Unknown said...

com um sorriso maroto porque paz era o que menos desejava à alma de alguém, nem mesmo à sua.
A paz não é criativa, não desperta curiosidades, problemas para resolver. E Poseidon gosta de criar.

O Pai said...

Quero renascer.

Este é o momento de voltar a nascer outra vez.

Vamos recomeçar. E desta vez é a sério! ! !
________________________________

Era uma vez, um menino que gostava de ir à praia.

Ficava muito contente quando escavava, com o seu arranha tigres, grandes buracos na areia.

Porém, ontem ficou preocupado.

Começou a escavar durante a maré vazia, e conseguiu abrir um buraco tão grande, mas tão grande, que quando a maré subiu, veio uma onda e entrou pelo buraco dentro . . .

Mas, qual o seu espanto, quando constatou que o mar por inteiro seguiu a onda . . .

"Que vou fazer agora???" Questionava-se o menino. "A culpa não foi minha. Eu só fiz um buraco na areia com o meu arranha tigres..."

E assim desapareceu o mar. Que podia fazer para o obter de volta? E o que diria ao Policia, quando fosse falar com a sua mãe? ? ?

. . .